terça-feira, 31 de janeiro de 2012

HISTÓRIA DE UM MORTO

                Carmé contava agora uma de suas histórias aos médiuns novos,  sobre as sessões espíritas que ocorriam em sua casa, havia décadas. Todos bebericavam seu café e pegavam seus lanches, enquanto escutavam a divertida mestra. Ela começou então a contar:

“- gente, de todos os espíritos que acabavam de desencarnar que me apareceram aqui, este foi o melhor. Lá pelas tantas da sessão, em meio as rezas, sentimos a presença de um irmão desencarnado, e ele incorporou num dos médiuns. Logo eu vi que ele havia acabado de desencarnar, poderia estar desorientado, desesperado.

            E o espírito logo falou através do médium:

- onde eu estou? Quem são vocês?

-irmão, você está numa sessão espírita...

-eu, numa sessão espírita? O que eu estou fazendo aqui?

-irmão, acalme-se. Você agora está desencarnado, acabou de morrer. Está usando o corpo de um médium para se comunicar e...

            Então o espírito interrompeu  a frase e disse:

-opa, então quer dizer que eu morri?

-sim,- eu respondi, já começando a me preparar para o desespero do espírito, para a orientação, quando ele disse:

-Graças a Deus! Então quer dizer que eu estou livre daquela família?

            E eu, espantada com a reação do espírito:

-sim, senhor!

-Graças a Deus! –e perguntou, desconfiado: -eu não preciso voltar lá para me despedir, não é?

-não senhor...

-então está ótimo! Com quem é que eu vou embora???

-com o grupo de socorristas que estão com o senhor, pois não? –respondi  sem entender nada.

-ah, sim! Muito obrigado!

            Em seguida, o médium voltou a si, e a mesa toda caiu na gargalhada. É, gente, já vi de tudo nesta vida... Agora, como este espírito, com pressa de ir embora, nunca mais!”

            E os ouvintes riram com a história, as gargalhadas ecoando pela cozinha aconchegante, enquanto trocavam idéias, após aquela sessão de sexta feira.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

QUERIAM QUE TÚ FOSSES....

Queriam que fosses advogado,

Queriam que fosses engenheiro,

Ou matemático ou enfermeiro,

Poderias ser terapeuta, psicólogo,

Ou arquiteto, ou fonoaudiólogo,

Mas a tudo contestaste;

Querias escrever,

Querias a arte.

Ainda tentaste, é bem sabido,

Agradar a todos, pais e amigos,

Mas então tu sufocastes até a dor.

Confessas-te para ti mesmo:

O que eu quero, mas quero mesmo?

É  ser escritor!

E descobriste então

Que não necessitavas querer

Algo que já tinhas por direito,

Que viera de seu nascimento.

Pois aprender a escrever,

Assim, por obrigação,

Qualquer um aprende.

Mas a sensibilidade

Para juntar palavras em frases,

Frases em idéias,

E adorná-las de nervos

Que transmitam aos que as lêem

O que sentiste,

Isto é um dom.

E sabes hoje

Que podes sobreviver como

Advogado, terapeuta, engenheiro,

Mas viver, vera, veramente...

Como escritor, somente.

domingo, 22 de janeiro de 2012

ASSASSINATO ENTRE LINHAS

Assisti há uns dois dias um dos últimos filmes de Harry Potter com meus filhos. Não sei porque nem porquanto, esta madrugada acordei pensando na saga do bruxinho, e no penúltimo filme, aonde morre seu mentor, Dumbledore. Logo a seguir, lembrei-me de um artigo que li sobre a autora dos livros, relatando que tivera uma crise nervosa quando teve que matar Dumbledore na trama. Era uma morte necessária, segundo ela, mas ela sofreu ao matá-lo!

Confesso que não li ainda a saga infanto juvenil. Deixo esta missão para minha filha, e me contento em voar nas vassouras quando assisto os filmes... mas voltando ao assunto de matar um personagem, fiquei acordada de madrugada, imaginando como um escritor pode sofrer ao matar uma sua criação. Qual ligação existiria para se considerar um ser imaginário digno de um surto?

Comecei a imaginar, por exemplo, Agatha Christie, uma digníssima senhorinha inglesa, tomando o chá das cinco enquanto planejava como iria matar os personagens de seu novo livro, se com arsênico, com uma faca, um tiro... com que calma ela assassinava seus personagens!

Relembrando de outras leituras, de outros tantos personagens maravilhosos assassinados pela pena de seus criadores, me questionei se tiveram crises de consciência, também... eu já matei alguns poucos personagens em minhas crônicas, e, sinceramente, foi um sentimento libertador. Confesso que, ao escrever, a emoção de morrer junto com eles me arrebatava, mas nenhum deles me levou ao terapeuta...

A quem assassinamos, quando matamos nossos personagens? Como nos sentimos? Quem era Macabéa para Clarice, Tiradentes ou Heliodora para Cecília? Qual foi a emoção no momento de relatar a morte de seus personagens? Será que lágrimas rolaram? Será que sentiram alívio? Ou era um simples relato?

Qual parte de nós se vai quando assassinamos um personagem? Qual persona conseguimos desvendar ou eliminar? Partindo do princípio que o único fato certo na vida é a morte, nada mais natural que os nossos personagens também morram. Talvez por isto mesmo, para que tenham uma ponta de humanidade, e na tentativa de que não se sobreponham a nós mesmos, o matemos. E neste movimento, eternizamos o personagem, nossa criação, a nos assombrar...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

FERIDA

Sumia, assim, em meio ao turbilhão de idéias que iam e vinham, juntamente com a balbúrdia de vozes que a cercavam. Era uma egoísta, pensava, por querer estar sozinha naquela noite maravilhosa, com todos os outros querendo compartilhar tudo o que acontecera durante o dia.


Uma emoção azeda lhe apertava bem no meio do peito. Uma vontade de chorar sabe-se lá por quê. Uma lassidão nas pernas, como se elas fossem amolecer de repente, e ela fosse sumindo, sumindo. Vontade de nada fazer. Vontade danada de ser abraçada, acarinhada, compreendida, defendida. Sua fortaleza era ilusão, que todo mundo comprava. A realidade era este ser carente, implorando por aprovação.

Mas que! Ninguém prestava atenção naquela menina magrela, cabelos escorridos, óculos demodé, ombros sempre encurvados, como se quisesse experimentar a autofagia, ou um truque de mágica definitivo que a fizesse sumir.

Tinha medo dos moleques. Tinha medo do toque, e dos abraços que tanto precisava. Houveram toques e abraços indesejados, que haviam marcado sua alma, sua vida. Fora violentada, surrupiada de sua infância e inocência, e por quem tinha um amor incondicional, acima de qualquer suspeita. Como poderia sentir-se no direito de sentir-se bonita, se iria causar nos homens o desejo de ser novamente conspurcada? Como poderia ter certeza de que o próximo que chegasse estaria olhando para ela, e não só para o que seu corpo poderia oferecer?

Por isso o silêncio. Por isso o desleixo. E as respostas ferinas e o olhar desconfiado. Sentia que nada podia fazer, que o destino era um, e de lá não havia escapatória. Não tinha forças para lutar com estas idéias, e deixava-se levar pela corrente.

Seu segredo lhe sangrava por dentro. Não sabia o quanto estava ferida, mas sabia que havia uma sombra que lhe tirava a graça de viver. Só ela não poderia ser feliz. Todos riam. Alguns casais iam se formando, naquela beira de praia, e ela observava.

Ninguém a notava. Ela se isolara, estava mesmo só. Instintivamente afagou os próprios braços, na procura de calor. Para que estou aqui, nesta terra? E assim pensando, foi se encaminhando para a areia da praia, longe daquela manifestação de vida da qual não participava. Ninguém notou.

Saiu da vista de todos, a iluminação da rua já não banhava a areia. Olhou para cima, e só a luz da lua iluminava ao seu redor. Estava realmente sozinha. Ninguém dera por sua falta... seus pés se encaminhavam para a beira do mar, e não sentia nada. Foi entrando na água, gelada, molhando a saia, os quadris, o ventre. As ondas quebravam em cima dela, e ela não retrocedia. A roupa pesava, mas ela seguia em frente. Ninguém notara sua falta, nem ela mesma...

Uma onda a envolveu, e ela submergiu. Não resistiu, como não resistira, inocente, anos atrás. Enquanto perdia a consciência, porém, pensou que estava se limpando, naquelas águas...e abraçada pelo mar, fugiu de sua dor, no truque de mágica definitivo: morreu.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

SAL, SOL E SONHO

Sabia a sal, a sol e mar, mas do outro lado do oceano. Era de um branco quase leite, os cabelos aloirados, alto, tão alto que encurvava, com vergonha de se ostentar. Trazia em si mesmo a potência para o amor e para o riso, para envelhecer sem se perder, para viver num se achar.


Mas era silente. Guardava para si próprio seu modo quente, deixando que o frio do branco de sua pele o definisse. E acreditavam, pois de sua boca não saia sorriso. Pensava tanto que o corpo não acompanhava tamanho movimento, e deixava de reagir a cada nova idéia. Sorria era por dentro.

Tinha mãos de acalanto, que pouca gente provou. Se guardava não sei pra quem, pois que era homem, e homem não tem costume de se guardar para ninguém, nem para si próprio... Veja bem, se guardava não no sentido que estás pensando, mas de um jeito mais profundo, de não se dar quando está se dando, entende... Mistérios de muito pensar.

Também lia pensamento alheio, principalmente da mulher que amava. Lhe sabia os gostos, lhe terminava as frases, para a vida lhe fornecia as bases, vendo-a no sólido caminhar... tinha paciência muita, pois a via se entregar a um e outro, e ele esperava seu dia chegar.

Tinha visão do mundo, talvez por sua grande estatura, que lhe dava vantagem. Talvez pelo claro de seus olhos, que guardava a profundeza do mar que seus avós haviam atravessado. Sabia dos versos, sabia do silêncio, e sabia encantar.

Encantou a moça que amava alisando um bichano pequeno. A moça perdeu a fala e começou a lhe amar. Mas era amor com tanto problema: eram dois silentes a se querer, e nenhum a confessar. De encontros e desencontros, o amor veio a morrer, fenecer, murchar...

Mas ele sabia entrar no sonho também. Era de tanto gostar, que a noite voava para dentro dos sonhos dela, para vê-la suspirar. Cantava-lhe cantilenas, brincava com os cabelos dela, lhe dizia de tão grande amar. E ela acordava afogada com o azul dos olhos de sonho.

Tempo passou, pedra rolou, o mundo pra todos envelheceu. Mas um dia foi ele que acordou, afogado de lembranças. Da moça, do gato, do amor. Sonhou de novo com a moça, ela o enlaçava pela cintura, encostava a cabeça em seu peito, saudosa, feliz. Ele acordou com um sorriso, pois que isso nunca acontecera, mas era assim que sempre quisera, não era? É que ela achara o caminho para ele. Ele era bom de se recordar. E começou a pensar:

“Ele sabia a sal, a sol e mar...”

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

PLATÕNICO, AOS 16.

Poema antigo, perdido em cadernos amarelados. Divido a lembrança aqui, com vocês.

Teu rosto de menino-sonho,
Teu jeito de menino sério,
Teus olhos tão pouco risonhos,
Encerram sempre um mistério.

Teu jeito um pouco tristonho,
Teu rosto, quase sempre sério,
Teus cabelos, esperando afagos,
Meus afagos, quase sempre etéreos.

Teu mistério que me é afago,
E apagado, o teu rosto sério,
Os teus olhos, com um brilho etéreo,
Me dão um abraço, que me é tão caro.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

LÚCIDA

Li no Blog do Menalton Braff uma short history. Então escrevi esta, há muito guardada na minha cabeça, pedindo para sair.


Meses e meses naquela casa de repouso. Afinal, quebrar um fêmur aos 78 anos e sozinha, só a poderia levar para um lugar como aquele. Como ansiava a volta para casa! Mais dois dias, prometera o médico, e ela voltaria para seu velho sobrado. Ah, teria que fazer adaptações, sim. Não poderia ir ao andar de cima tão cedo, não, não.


“A cabeça tão boa, e este corpo que me pesa. Estes joelhos com artrose, poderiam me ajudar, não é, Senhor? O Senhor está me ouvindo? Eu só quero a minha casa em paz. Não quero mais briga com os filhos, que aqui me deixaram, quero só minha roda de amigos, que me acompanham.”

Chega sua amiga, Leilinha, recém convertida para o budismo. “Oi, gatona. Vim te ajudar com o banho. Como você está?” Ela responde que está bem, um pouco ansiosa com sua volta para casa. Queria encontrar a casa vazia, não com os filhos, rapinando em volta.

Leilinha diz para ela confiar nos guias, tudo se ajeita. A enfermeira chega, sorridente, avisando que é hora do banho, cumprimenta Leilinha, figura assídua junto a amiga enferma. Começam a ajudar a velha senhora a despir-se. Seu grande corpo vai sendo manipulado pelas mãos ágeis e carinhosas da amiga e da enfermeira, que a transferem para a cadeira de banho com todo o cuidado.

Ela a tudo percebe e registra. Lúcida, lúcida, sempre. Ajuda as duas como pode, aproveitando a água que lhe lava o corpo e a alma. Lúcida, lúcida, luz... a voz de Leilinha está longe, a enfermeira a olha nos olhos, a chama. “estou aqui, menina! Calma! Que tanto desespero?”

Lúcida, lúcida, luz... ela percebe o plano mudando, o teto está mais longe, ou ela que caiu? Leilinha fala com ela como se ela fosse um bebê, que coisa! “eu quebrei o fêmur, não estou gagá!” Percebe sua cabeça no colo de Leilinha, mas será possível que a maluca está me recitando os sutras em chinês? Tenta falar, mas seu corpo não responde.

Lúcida, lúcida, Leilinha lhe fecha os olhos, e luz!! Salta fora do corpo, velha casca de grande serventia, e pôe-se de pé num salto. A um canto a enfermeira chora, chamando alguém pelo interfone; Leilinha retém sua cabeça nas mãos e afaga seus cabelos, recitando seus sutras encomendando sua alma. Ela olha para si mesma, para as mãos, para suas pernas. Seu velho corpo ficou para trás. “Nossa, Senhor, como Vosmecê é rápido prá me dar resposta.”

E sai caminhando, feliz da vida, para o seu novo sobrado, onde há de ter paz.

Blog Palavra Prima, é para lá que eu vou

Quem chega aqui deve perceber que as postagens estão cada vez mais escassas. O motivo real é a criação, há mais de dois anos, de outro blog,...