Diminuta, sou só meu
ventre, apertado, contraído, na expectativa de ser mais. A paixão sem dono
ainda assim me faz sonhar, como se meu corpo fosse jovem, e meus sonhos,
possíveis.
Instauro o reinado de minha alma, a buscar a tua, perdida,
escondida, amuada embaixo da antiga goiabeira. Ficaste ali, irritadiço, ante a
inevitável separação de nossos lábios ao
soarem passos de meu pai no antigo quintal.
Pois agora, escuta! Sorri... dar-te-ei o beijo que ansiavas.
Meu pai é morto, as traças já corroeram as cambraias do vestido de menina, o
relógio antigo nem bate mais.
Escuta, menino, negro como o carvão, sorriso alvo de aurora.
Estiveste comigo durante tantos anos, tua proibida beleza me amolecendo as
pernas, a espera de teu calor me aquecendo nas noites frias e sem amor.
São mortos todos os que nos diziam proibições. Suas memórias
também estão assim, mortas. As ruins, querentes de sobreviver, queimei junto
com papéis que amarelavam no sótão.
Vivos estão nossos momentos. Os banhos de rio, onde minha
branquidão de fantasma-menina feriam tuas retinas, e tua pele negra me chamava
para a vida.
Ainda sinto: relva, chão, corpos, tu e eu, proibidos para
aquela gente que desconhecia amor. Ainda sofro: tú com tuas malas, eu para o
sanatório, frio, castigo para quem queria ser o que queria ser.
Os gritos de que eu havia manchado minha honra já vão longe.
Antes tivesse me manchado de tua cor, me confundido em tua pele, e partido
contigo. Mas minha vida não me pertencia. Eu era, como tu, propriedade, pau
mandado. Eu, branca lua, tu, sorriso de sol.
Expandida ante estas memórias, sinto que ainda te tenho...
menino da goiabeira, moço do rio, corpo de calor, sorriso alvo, meu beijo
perdido, meu eterno amigo, garoto crescido, fruto proibido, meu amor...
Foto: Dani Hiro