Passos dados, pés
descalços, poeira no espaço... me arriscar porta afora, pisar nas madeiras
soltas da varanda, tocar na branca tinta descascada, na madeira mais uma vez crua,
exposta ao tempo e á chuva, como eu...
Vejo as velhas
janelas, um tanto emperradas com tanta água que caiu do céu; pelo lado de
dentro, cortinas simples, uma chita xadrez, lembrando velhos filmes. Olho ainda
a escada, que sempre range, anunciando vida na casa. Corrimão gasto, lustroso
de tantas mãos que passaram; e o ‘lá em cima’, sempre o medo do escuro que pode
me tragar, me levar, transformar. Lá em cima, dissolução, nos antigos quartos,
de velhas camas, lençóis bordados por antigas noivas, perfurados pelo tempo e
traças, flores simples na jarra de louça
que antes servia para verter a água na alva bacia, e acordar o rosto com a
pátina do sono.
O lá em cima me traz
a visão dos arredores, o pomar descuidado atrás da casa, os pássaros que teimam
em fazer seus ninhos no beiral velho; os montes baixos que recortam minha
paisagem, me dizendo “trás os montes, trás os montes...”, com sotaque lusitano.
E eu lá sei o que pode haver atrás de cada monte, além de pasto, vacas e
cupinzeiros? Não sei, não sei.
Aqui, neste alpendre
antigo, me preparo para pisar na terra, irremediavelmente suja, pois que assim
nasceu, dentro da minha concepção recebida, à força, de meus antepassados.
Quisera poder pensá-la, senti-la, tocá-la, como coisa limpa, sagrada, bendita, como algo em mim, fala – mas cala.
Pisarei esta terra com pés curiosos, atentos ás sensações, arranhões e
pedregulhos que possam me marcar, me causar novas experiências. Pisarei a terra
como semente que nela cai, esperando germinar e criar frutos em seus futuros
galhos.
Me preparo, pés
descalços, compasso de espera, passo, compasso, passo. Levanto o velho saião,
toco a mureta toda escalavrada por formões, rococós e antiguidade, e piso
então, nesse solo que me viu nascer, que me viu crescer, e que receberá meu
corpo quando este esquecer de ser. Pó, poeira, levantada com o passo, compasso,
passo. Danço, cirandeiro solitário, músicas de minha infância, completude que
me abraça.
Uma chuva fina me
cola a roupa ao corpo, a lama aos pés, o sorriso à face, e me volto, então,
para a janela (aquela, á direita, sempre com a veneziana aberta, aonde, sempre
a espreitar, mora minha alma). Gotas de chuva escorrem no vidro sujo, caem no
beiral, fazem caminho no chão, respingam
nas minhas pernas, pintura abstrata de argila molhada, e me sobe pelas
narinas o cheiro doce e ocre de terra, e notas das folhas verdes do pomar...
Minha alma,
antiquíssima, me olha da janela, e inveja a minha matéria, concreta, real,
sensação em êxtase. Eu sorrio para ela, e a chamo: habita- me! e ela some da
janela. Como num transe, vejo uma menina sair para a varanda, pés descalços,
cabelos desgrenhados, dentes pequenos, de leite, alvos, um sorriso. Ela corre
para mim, se joga em meus braços, e, assim, recebo minha alma, que se
incorpora, definitivamente, em mim... passo, compasso, passo, pés descalços,
vida enfim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário