Há que se cuidar, com zelo, de todos os nossos
antigos malfeitos. Sim, todos aqueles que bailam em nossa memória, repletos de
odores, tatos, arrepios e calores; todas as mordidas nas entranhas de prazer ou
de terror; cada olhar que nos chegou, cada cor, cada cena.
Há que se cuidar, com zelo, para que não cheguemos
á perfeição. Sim, a perfeição de pensamento, sabendo que não mais existem
ilusões, nem vida após morte, nem vida durante a vida. Tudo torna-se tão
insosso, sem um segredo que nos leve para o diabo que nos carregue! Portemos,
guardado em algum bolso, uma carta perdida, um pedaço de tecido velho, uma foto
escondida, para que o passado venha, assim, alegro ma non tropo, colorir o presente
insosso.
Há que se cuidar, com zelo, para não perdermos as
sensações que nos foram caras. Escrevamos em todos os textos, a cada mil dias,
para que, ainda que se passem mil anos, aqueles que lerem possam dizer: aquele
ali, olhe, foi marcado por tal fato, presente do primeiro ao último ato.
Há que se cuidar, com zelo, de toda e
qualquer reação que haja marcado o
corpo: o toque que trouxe o arrepio, o hálito que chegou tão próximo, mas não
tornou-se beijo, o olhar profundo que fez subir calor pela espinha, a carícia
pedinte a pedir carícia. Há que se cuidar para que não descuidemos dos pecados,
pois já há mais de trezentos e sessenta e cinco santos espalhados para devoção,
e outros tantos mártires esperando para serem dignos de oração.
Há que se cuidar, enfim, da nossa humanidade, dos
nossos antigos malfeitos, das nossas querências, dos nossos pecados mais
secretos, dos textos, hieróglifos, ainda a serem descobertos. Porque ainda
escuto sinos repicarem enquanto leio poemas, e me esbofeteiam a face com
palavras de amor que não cri.
Amo este texto!
ResponderExcluireu também...rs.
ResponderExcluir