Deus me livre desta tristeza que me
toma, desta vontade de chorar fora de hora, desta vontade de não mais lutar, ou
sonhar, ou ser forte. Deus me livre. Deus me livre deste olhar triste, deste
canto de boca caído, desta sensação de incompetência em viver, inabilidade em
sentir felicidade, Deus me livre.
Me livre também desta consciência que
me pesa, não por ter feito muita coisa errada, mas, ao contrário, por ter
tentado sempre ser tão certa. Deus me livre deste remorso que me consome, por
não ter fugido com o circo, tido um filho com o trapezista, me apresentado em
qualquer pequena cidade perdida neste mundo, pintada de vagabunda e pensando
ser artista. Deus me livre.
Deus me livre dessa ignorância que me
consome, e que tento sanar engolindo palavras, livros, compêndios. Deus me
livre dessa gana de ser mais do que minha própria pessoa, e que me tira o sono,
noite sim e outra também.
Deus me livre desta falta de humor que
me tem perseguido, consumido, engolido. Era mais feliz quando era sarcástica e
ácida com minha própria história. Agora que vejo quem sou, ai, Deus me livre,
me descontento todo dia...
Que eu possa contentar-me com coisas
simples, como um prato cheio na minha frente, o lençol limpo na minha cama, e a
novela das seis, sete e oito a me esperar, avidamente, para aumentar o número
do ibope. Que eu possa contentar-me em ouvir as vozes no rádio, e não cantar; ouvir
instrumentos, e não tocar; ver belos desenhos, e não encostar o carvão no papel
em branco, amarelado de tanto esperar.
Que eu possa contentar-me em ser
somente mais uma dentre a multidão, que faz churrasco aos domingos e entorna
muita cerveja, para rir e falar bobagem sem ter culpa no cartório. Que eu possa
esquecer sonhos mirabolantes, porque quem nasce pra tostão, não chega a vintém,
e seguir com todos os navegantes.
Deus me livre da existência sofredora que
tenho, cheia de consciência; quero a ignorância dos inocentes, dos
desajuizados, dos iletrados, que não sabem e por isso também não são cobrados.
E por fim, e pensando bem, se Deus não
puder me livrar de mim mesma, então que me dê sabedoria e clara vidência, para
que possa cumprir minha sina com dignidade e um sorriso bobo no rosto, como
todos os iluminados o fizeram, segundo constam nos compêndios possuídos pelas
traças, e que herdei da bisavó do retrato.
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