álbum de família |
O passado revira no presente, mas não podemos revisitá-lo,
nem pisá-lo com os mesmos passos, calçando os mesmos sapatos gastos. Há de se
pisar nele vestido de memórias, e, tão somente, tocá-lo com os olhos. Se
mergulharmos em nós mesmos atrás das antigas emoções, depararemos com emoções
caudalosas, que nos tragarão. Não! Há de se tocar no passado somente com os
olhos...
Evocações breves, nomes soltos no espaço, cenas antigas,
sempre me fizeram voltar a espiar pelas janelas do tempo. Tentei, e tentei em
vão, usar os mesmos sapatos para pisar aqueles ladrilhos vermelhos, usar minhas
mãos para tocarem outras mãos novamente, sentir o plissado do vestido de seda amarela
que me caia tão bem... mas faltava a carne, o vívido, o concreto. Percebia que
flutuava, e cada esforço para me colocar no chão era permeado de uma grande
angústia, e me dei conta, então, que quando estamos no passado somos fantasmas
de nossa história, seres desencarnados querendo voltar para um corpo que não
nos pertence, para uma emoção que não nos anima mais.
Nas evocações que me fazem voltar para o passado, redescobri
a menina que um dia eu fui, fazendo buracos no morro de argila branca,
amaciando-a com água e modelando-a em pequenos pássaros. Esta menina que não
mais habito sorria sem abrir os lábios, para não mostrar a falta do dente que
caíra, e limpava as mãos de barro em sua roupa de sítio, chinelo nos dedos. O sol suave de outono lhe caía em cheio naquele
cenário, junto com a brisa fresca que mexia em seus cabelos cacheados e seus
olhos sorriam. Plena ela era, plena. Sabia-se a si mesma naquele instante, não
duvidava porque desconhecia, e a inocência a protegia da angústia de não ser
aquilo que os outros gostariam que ela fosse.
Nas evocações que me chamam para o passado, aquela menina se
preparava com um vestido amarelo para dançar. Não sabia dar nome para a alegria
que sentia, então vestia--se de delicadezas para o garotinho que a fazia
sorrir, e o fazia sorrir também. Os véus da palavra ainda não haviam sido
levantados para eles. Não nomeado, o amor era livre para estar onde queria, sem
vergonhas, medos e pecados. O amor era e não era em si mesmo, porque assim não
fora chamado.
O passado revira no presente, e vejo a menina de mãos dadas com
seu pai, se equilibrando na guia da calçada, descendo a ladeira rumo ao mar. A imensidão
de areia branca, convidativa, as gaivotas que voavam em profusão, arremetendo
no mar logo á frente, buscando seu pescado. E a menina, esta que eu fui,
respirava fundo, falando sem parar, confiante, escorada pela figura ao lado.
Não posso mais pisar os mesmos passos, então flutuo. Não posso ser mais esta
menina, então a contemplo. Não posso mais entrar dentro dela, mas a levo, intacta,
aqui dentro, vestida de memórias, e tão somente a toco com os olhos...
coisa mais linda de ler. Quase vi a menina.
ResponderExcluirPodemos percorrer os mesmos caminhos mas nunca nada é igual.
ResponderExcluirUau! Puxa que lindeza!
ResponderExcluirRespondendo às três, obrigada, obrigada, obrigada, de coração...
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