Apresento a vocês o primeiro texto do projeto Caderno de Notas, realizado em parceria com outras seis escritoras. Cada semana, estaremos exercitando diversos olhares sobre um mesmo tema. Confiram os outros textos com o tema da semana, "Noites Brancas":
Raquel Stanick (quinta)
Blogue. Dessas que eu sou
Lunna Guedes (sexta)
Blogue. Catarina voltou a escrever
Ingrid Caldas (sábado)
Blogue. Perfumes e Palavras
Letícia Alves(domingo)
Blogue
Minhas
Tempestades
VOCAÇÃO PARA AMAR
Lamentos. Peito
opresso, lágrimas que vertem de meus olhos, janelas d’alma escancarados nesta
inundação infindável. Sinto meu corpo fraco, afundando no sofá velho, que me
recebe aconchegante. Um suspiro misturado a um ‘ai’ sai de minha boca, e eu não
o controlo; antes, precipitam-se outros ais, correntes e ligados, como se
tomada de imensa dor na carne.
Meus braços apertam meu
ventre, minhas unhas se enfiam em meu próprio braço, parece que amansam a dor
que vem com um uivo, rasgando por dentro de mim. Perdida nesta casa antiga,
cercada de mato por todos os lados, me sinto mais e mais uma ilha. Isolada.
Sozinha. E agora, com meu orgulho devidamente esquecido e posto a dormir, sem a
esperança de ter você, novamente. Você, a quem escorracei daqui, mala e cuia,
por não aguentar mais sofrer com teu amor plural e socialista. Você, que
naquela noite branca, lua cheia como um lustre pendurado em nosso céu,
confessou que seu único vício era amar demais, e a muitas e tantas. E eu ri,
imaginando ser mais uma de tuas brincadeiras, jogo de palavras, teste de amor.
Vivíamos como dois
mendigos que se saciassem com o prato de comida oferecido de repente. Tuas
viagens, teu trabalho. Eu perdida em meus textos, minhas composições, me
encontrava quando teu riso adentrava pela porta, e teu corpo se deixava ficar
aqui, neste sofá velho, lembras? Me aninhava em ti, você em mim, e o paraíso
chegava célere, sem passagens intermediárias pelo purgatório, pensava eu.
Partias, dias depois,
deixando o teu cheiro de perfume amadeirado na fronha, no lençol, na camisa de
algodão cru que gostavas de usar, e eu
demorava a lavar. Usava teus chinelos para poder encontrar meus passos, sentava
na cama e repetia teu ritual, antes de dormir: descalçar estes mesmos chinelos,
pisar no tapete de lã, colocado ao lado da cama, e deixar a sensação de maciez
subir pelas pernas, pelo corpo, para relaxar e dormir.
E houve o dia em que
chegaste mais calado, com um meio sorriso, e meu sorriso ficou também pela
metade, coração meio estranho, aquele aperto que precede o que a gente não
quer. Saí da frente da pia de lavar louça com as mãos molhadas, e você veio com
uma toalha e as secou, quieto, olhar desviando do meu. Jantamos, os talheres se
conversando num ânimo que não nos pertencia. Perguntei de teus dias longe de
mim, fiz piada de desatinos que eu havia cometido na semana, te servi um vinho
gelado, barato mas bom.
Você relaxou, deixou
vazar teu sorriso novamente, teu branco riso, iluminando minha noite,
novamente. Lá fora, na varanda, sentamos, eu puxei tua mão, e a lua, magnitude
branca, novamente nos espreitava. E eu não suspeitava o que viria no próximo
momento. Teu sorriso foi de um momento para outro congelado, e você começou a
me dizer o quanto me amava, se eu sabia? Sim, sabia, sabia. Achava que sabia. E
você despejou tua história paralela a nossa, com outra vida, outros nomes
enlaçados ao teu, e me presenteou com o pior de ti quando eu só te dava o
melhor de mim. Jurou que queria ficar comigo, mas algo acontecera, um filho
vindo, e precisava, eu entendia, não é? Ir embora por uns tempos. Não, eu não
entendia. Eu não entendia nada, o que eu escutava não era o que eu queria
ouvir, e a lua sumiu, junto com minha luz, atrás da nuvem cinza que prenunciava
o temporal que vinha breve.
Te pus para fora. Com
teu cheiro, com teu corpo moldado ao meu, tentei ser forte. Você tentou
argumentar, mas eu entendi naquele momento que tua capacidade grandiosa de amar
não era compatível com minha falta de capacidade de perdoar. Fostes embora, fim
de setembro, embaixo do temporal que já se precipitava. Deixou tua chave pelo
lado de fora da porta, como se esperando poder voltar. Eu também me
precipitava, cá dentro de meu quarto.
Teu silêncio atravessou
a lua cheia e minguante. Recebi uma carta tua, arrependido, pedindo para
voltar, como na música antiga. Podia? Sim, respondi. Volte, volte. E esperei
que entrasses pela porta por toda a lua nova e crescente. Você não veio. Sem compreender,
passei meus dias sempre esperando o próximo, e me chegou você. Não como eu queria.
Não como eu esperaria. Numa carta. Com nome de outra. Me contando tudo. Tu
voltavas para mim, debaixo de outro temporal, subindo a serra, e o acidente.
Por isso não viestes. Só agora chegastes. Na carta. Tua vocação para amar te
rendeu prantos dos dois lados. A minha para não perdoar me rendeu a tua falta,
permanente, e estas noites brancas que virão, somente com tua lembrança.
Muito lindo!,
ResponderExcluirgostei
Elisa Alderani
Elisa, obrigada! aproveite para acompanhar minhas companheiras de projeto! será uma aventura literária interessante! beijins
ResponderExcluirSuas letras preenchem meu coração com o melhor que se pode despertar.
ResponderExcluirSensibilidade à flor da pele!
Beijos, querida... Honra em estar neste projeto em sua companhia!
vocação de amar para o amor...
ResponderExcluirintenso..
beijos...
Tatiana, Ingrid, muito agradecida pelos comentários, e realmente, me sentindo honrada em participar deste projeto. E que possamos sempre desperta 'o outro' com nossos escritos! bjs
ResponderExcluirNão sei, fiquei em dúvida, se a volta - autorizada mereceu esse temporal. Não sei, acho que desde a volta através da carta, num primeiro momento - ainda que autorizada, já tinha sido um temporal.
ResponderExcluirbacio
Lunna, vamos permitir a melancolia e o ranger de dentes, rs!!
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