E para esta terceira semana o tema é 'Em algum lugar em mim'. Acompanhem as escritoras participantes em suas expressões singulares!
As velas estão acesas. Não há nenhum
motivo especial, somente a falta de luz que acompanha esta chuva de primavera.
Gosto do ambiente assim, em tom de sépia, como foto antiga. Voltar no tempo, meses, anos, guardados nos sótãos
da memória. Singulares momentos em que a plenitude em mim foi tanta que o ‘eu’ tornou-se superlativo. Extrema lucidez,
consciência do segundo transformador, da palavra ou gesto que redimiram,
livraram e marcaram minha alma antiga.
Na luz das velas, antigos amores se
delineiam. Amores que não deram certo, amores que deram errado, amores que não
saíram do papel, ou que somente foram inventados. Sim, sei que o licor
adocicado me deixa assim, sentimental. Desculpa? Licor é uma desculpa deliciosa,
convenhamos.
E lá está, na luz da vela da esquerda o
meu ‘encosto’. Sempre que o via a pele arrepiava. Os pelos eriçavam, o estômago
contraia, a respiração ficava... diferente. Mas a fleuma era minha companheira,
não havia nada que me delatasse. Nossos modos, evasivos, os olhares que se
desviavam, a corrente que se propagava de um corpo a outro... na vela da esquerda
está o ‘encosto’ que deu valia ao meu caminho, quando se desfez em palavras de
amor. Descobri que ser amada, ainda que em pretérito imperfeito, faz a alma se
sentir completa, tornar-se maior por acréscimo. Lhe entreguei meu amor antigo,
de outras eras, ainda que fosse só para recordação, em linhas e mais linhas,
lágrimas e mais lágrimas, mas temo que ele não tenha percebido. Pouco importa. A
vela da esquerda agora é somente chama, acima da cor rubra.
Na vela da direita bruxuleia outro
rosto. Macio, alvo, olhos claros perdidos em outro tempo. Fez o papel de ser
luz dentro de mim e buscar nos meus recôndidos minha potência. Quando eu me
desacreditava, dizia: creio em ti, vá em frente. Esta da direita era o anjo que
aparecia noturnamente, me olhava com olhos antigos, e me declarava o seu amor
de essência para essência. Ele me via, e isto é tudo. E no dia em que o tempo
parou, a consciência clara de um segundo me avisou que não mais o veria. A vela
agora é chama alta, apontando para o teto.
No fundo da sala, outra vela dança.
Sedutora, fez-me recordar de corpos colados dançando, do perfume antigo de
homem que impregnou incessante minhas lembranças, e da primeira consciência que
eu habitava um corpo. Da camisa que ele usava quando chorou pedindo para que eu
me afastasse, sem, porém, me soltar de seu abraço. Aqui a falta do ópio de sua pele foi a
consciência que ganhei, e a plenitude era de dor, pois ainda só me sabia
inteira através do outro. Paixão de moça, a vela dança, apaga a chama.
O licor continua delicioso. As velas
espalhadas, o frescor do vento que veio com a chuva completam esta noite.
Dentro de mim, em algum lugar, há um altar para todas estas velas. Para os
momentos em que sair do corpo não era só uma expressão, falar com a alma não
era uma metáfora, e estar inteira não era algo subjetivo. São momentos que me
faltam, pois o êxtase não é continuidade; é relâmpago na escuridão, que ilumina
e tudo mostra, mas se vai, trazendo o som, a consciência ampliada, no segundo
seguinte. Retomo o instante da consciência, me revigoro, e apago as velas. Sussurro:
a luz agora está em mim.
p.s:
e para o amor que vingou, não há palavras nem velas. Só as mãos dadas que
permanecem como testemunho...
que lindo Ana..
ResponderExcluirme transportei e senti o calor e a luz..
um olhar de carinho..
beijos.
Ingrid, grata por teu olhar! grande beijo!
ResponderExcluirser amada em pretéritos imperfeitos…amei isso!
ResponderExcluira maioria dos pretéritos são imperfeitos, não é? senão seriam presentes...
ExcluirA cada momento, uma nova sensação, um outro sabor...
ResponderExcluirLindíssimas letras com aroma de momento e continuidade.
Beijos, querida Ana!
Tatiana, obrigada!! este projeto está delicioso!! bj
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