Há aqueles que nunca olham para trás. Eu, ás vezes olho,
para certificar-me que não há nenhum esqueleto me seguindo. Quando, por
desventura, pressinto algo além de minha sombra em meu costado, trato de
cantarolar Glórias ao presente e exéquias ao passado, para que este se aperceba
que foi morto e enterrado.
Já olhei muito para trás, deste mal não há homem ou
mulher que não padeça, não é mesmo, seu doutor? Olhei muito para trás, sofri e
ressenti cada dor que eu achava perdida, reabri cada mal sangrada ferida,
chorei como se num fosse cabra de aguentar ferro e fogo. Claro, não na frente
de muitos, mas no duro de minha cama. E eu pedia ao senhor Deus que me levasse
essas mágoas, águas ruins que empesteavam meu sono, mas acho que semente que eu
plantei, eu tinha que desenraizar, doutor.
Sim, amores de muitas primaveras, que plantei sementes e
não se deram o trabalho de desabrochar; palavras ruins que ouvi e meus ouvidos
não se dignavam a esquecer; e os olhos, doutor, que teimavam em ter outras
imagens na retina além daquelas que comum e diariamente viam? Quase enlouqueci,
por excesso de memórias dentro de mim. Também a pele, doutor, a pele, o nariz,
teimavam em me trazer de volta toques e cheiros de peles que toquei e senti,
como se fossem coisas vivas e independentes... parecia uma revolução de meu
corpo contra meu coração. Eu queria verter fora as lembranças, e o corpo dizia
não.
Me acostumei então com aquela sensação de não pertencer a
tempo nenhum. Pé no passado, corpo no presente, e desse jeito, sem esperança de
futuro... meus fantasmas, meus esqueletos de memória me seguravam os pés,
alisavam o corpo, embalavam meu sono, nem apelando a todos os santos conseguia
me livrar deles... e então, descobri o cantar. Aprendi a cantar, e a sensação
foi se indo embora. A música pôs meu sentimento no presente, e lavou meus olhos
da terra velha, das imagens antigas que teimavam em permanecer. Minha pele
arrepiou-se com os sons que vibravam nela, meus ouvidos se encheram de outras
palavras, mais doces, e mais amigas. E a palavra, doutor, a Palavra me
libertou. Porque através da harmonia da música, e da palavra que acompanhava os
sons, me libertei de fantasmas, de esqueletos, do que não mais me pertencia e me
habitava. Por isso, doutor, réquiem e glória andam juntos em meu repertório...
para livrar-me do mal, amém.
Passando para dar-lhe os parabéns pelo blog e pelos belos posts. Saudações literárias. Haroldo Barbosa Filho
ResponderExcluirHaroldo, que honra poder receber um elogio desses! Saudações literárias para ti também!
ResponderExcluirBeleza, Ana. Seu texto é agradável, profundo, provocativo. Gamei. Menalton
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirMenalton,meu mestre mais recente, ver teu comentário aqui é outra honra para mim, assim, iniciante. Obrigada!
ExcluirO passado faz amarras aos nossos pés e nos prende em obediências antiquadas, e assim cria-se em nós uma força que nos faz Olhar para “trás” e ter medo de atravessar o presente ou ainda pior, aniquila o sucesso de uma possível realização que mora no futuro… "Doutor", "a Palavra me libertou"
ResponderExcluirMeu amigo José Vitor, quando escrevo, a consciência que ganho me liberta. Aprendo com a palavra que teço, no instante mesmo que faço. Um grande abraço!!
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