terça-feira, 5 de novembro de 2013

VOCAÇÃO PARA AMAR - PROJETO CADERNO DE NOTAS

 Apresento a vocês o primeiro texto do projeto Caderno de Notas, realizado em parceria com outras seis escritoras. Cada semana, estaremos exercitando diversos olhares sobre um mesmo tema. Confiram os outros textos com o tema da semana, "Noites Brancas":

Luciana Nepomuceno (segunda)
Blogue. Borboleta nos Olhos


Tatiana Kielberman (quarta)
Blogue. Detalhes Intimistas



Raquel Stanick (quinta)
Blogue. Dessas que eu sou


Lunna Guedes (sexta)
Blogue. Catarina voltou a escrever

Ingrid Caldas (sábado)
Blogue. Perfumes e Palavras



Letícia Alves(domingo)


VOCAÇÃO PARA AMAR

Lamentos. Peito opresso, lágrimas que vertem de meus olhos, janelas d’alma escancarados nesta inundação infindável. Sinto meu corpo fraco, afundando no sofá velho, que me recebe aconchegante. Um suspiro misturado a um ‘ai’ sai de minha boca, e eu não o controlo; antes, precipitam-se outros ais, correntes e ligados, como se tomada de imensa dor na carne.
Meus braços apertam meu ventre, minhas unhas se enfiam em meu próprio braço, parece que amansam a dor que vem com um uivo, rasgando por dentro de mim. Perdida nesta casa antiga, cercada de mato por todos os lados, me sinto mais e mais uma ilha. Isolada. Sozinha. E agora, com meu orgulho devidamente esquecido e posto a dormir, sem a esperança de ter você, novamente. Você, a quem escorracei daqui, mala e cuia, por não aguentar mais sofrer com teu amor plural e socialista. Você, que naquela noite branca, lua cheia como um lustre pendurado em nosso céu, confessou que seu único vício era amar demais, e a muitas e tantas. E eu ri, imaginando ser mais uma de tuas brincadeiras, jogo de palavras, teste de amor.
Vivíamos como dois mendigos que se saciassem com o prato de comida oferecido de repente. Tuas viagens, teu trabalho. Eu perdida em meus textos, minhas composições, me encontrava quando teu riso adentrava pela porta, e teu corpo se deixava ficar aqui, neste sofá velho, lembras? Me aninhava em ti, você em mim, e o paraíso chegava célere, sem passagens intermediárias pelo purgatório, pensava eu.
Partias, dias depois, deixando o teu cheiro de perfume amadeirado na fronha, no lençol, na camisa de algodão cru  que gostavas de usar, e eu demorava a lavar. Usava teus chinelos para poder encontrar meus passos, sentava na cama e repetia teu ritual, antes de dormir: descalçar estes mesmos chinelos, pisar no tapete de lã, colocado ao lado da cama, e deixar a sensação de maciez subir pelas pernas, pelo corpo, para relaxar e dormir.
E houve o dia em que chegaste mais calado, com um meio sorriso, e meu sorriso ficou também pela metade, coração meio estranho, aquele aperto que precede o que a gente não quer. Saí da frente da pia de lavar louça com as mãos molhadas, e você veio com uma toalha e as secou, quieto, olhar desviando do meu. Jantamos, os talheres se conversando num ânimo que não nos pertencia. Perguntei de teus dias longe de mim, fiz piada de desatinos que eu havia cometido na semana, te servi um vinho gelado, barato mas bom.
Você relaxou, deixou vazar teu sorriso novamente, teu branco riso, iluminando minha noite, novamente. Lá fora, na varanda, sentamos, eu puxei tua mão, e a lua, magnitude branca, novamente nos espreitava. E eu não suspeitava o que viria no próximo momento. Teu sorriso foi de um momento para outro congelado, e você começou a me dizer o quanto me amava, se eu sabia? Sim, sabia, sabia. Achava que sabia. E você despejou tua história paralela a nossa, com outra vida, outros nomes enlaçados ao teu, e me presenteou com o pior de ti quando eu só te dava o melhor de mim. Jurou que queria ficar comigo, mas algo acontecera, um filho vindo, e precisava, eu entendia, não é? Ir embora por uns tempos. Não, eu não entendia. Eu não entendia nada, o que eu escutava não era o que eu queria ouvir, e a lua sumiu, junto com minha luz, atrás da nuvem cinza que prenunciava o temporal que vinha breve.
Te pus para fora. Com teu cheiro, com teu corpo moldado ao meu, tentei ser forte. Você tentou argumentar, mas eu entendi naquele momento que tua capacidade grandiosa de amar não era compatível com minha falta de capacidade de perdoar. Fostes embora, fim de setembro, embaixo do temporal que já se precipitava. Deixou tua chave pelo lado de fora da porta, como se esperando poder voltar. Eu também me precipitava, cá dentro de meu quarto.

Teu silêncio atravessou a lua cheia e minguante. Recebi uma carta tua, arrependido, pedindo para voltar, como na música antiga. Podia? Sim, respondi. Volte, volte. E esperei que entrasses pela porta por toda a lua nova e crescente. Você não veio. Sem compreender, passei meus dias sempre esperando o próximo, e me chegou você. Não como eu queria. Não como eu esperaria. Numa carta. Com nome de outra. Me contando tudo. Tu voltavas para mim, debaixo de outro temporal, subindo a serra, e o acidente. Por isso não viestes. Só agora chegastes. Na carta. Tua vocação para amar te rendeu prantos dos dois lados. A minha para não perdoar me rendeu a tua falta, permanente, e estas noites brancas que virão, somente com tua lembrança. 

7 comentários:

  1. Elisa, obrigada! aproveite para acompanhar minhas companheiras de projeto! será uma aventura literária interessante! beijins

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  2. Suas letras preenchem meu coração com o melhor que se pode despertar.

    Sensibilidade à flor da pele!

    Beijos, querida... Honra em estar neste projeto em sua companhia!

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  3. vocação de amar para o amor...
    intenso..
    beijos...

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  4. Tatiana, Ingrid, muito agradecida pelos comentários, e realmente, me sentindo honrada em participar deste projeto. E que possamos sempre desperta 'o outro' com nossos escritos! bjs

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  5. Não sei, fiquei em dúvida, se a volta - autorizada mereceu esse temporal. Não sei, acho que desde a volta através da carta, num primeiro momento - ainda que autorizada, já tinha sido um temporal.

    bacio

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  6. Lunna, vamos permitir a melancolia e o ranger de dentes, rs!!

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