segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

HÁ DE SE TOCAR SOMENTE COM OS OLHOS...

álbum de família



O passado revira no presente, mas não podemos revisitá-lo, nem pisá-lo com os mesmos passos, calçando os mesmos sapatos gastos. Há de se pisar nele vestido de memórias, e, tão somente, tocá-lo com os olhos. Se mergulharmos em nós mesmos atrás das antigas emoções, depararemos com emoções caudalosas, que nos tragarão. Não! Há de se tocar no passado somente com os olhos...
Evocações breves, nomes soltos no espaço, cenas antigas, sempre me fizeram voltar a espiar pelas janelas do tempo. Tentei, e tentei em vão, usar os mesmos sapatos para pisar aqueles ladrilhos vermelhos, usar minhas mãos para tocarem outras mãos novamente, sentir o plissado do vestido de seda amarela que me caia tão bem... mas faltava a carne, o vívido, o concreto. Percebia que flutuava, e cada esforço para me colocar no chão era permeado de uma grande angústia, e me dei conta, então, que quando estamos no passado somos fantasmas de nossa história, seres desencarnados querendo voltar para um corpo que não nos pertence, para uma emoção que não nos anima mais.
Nas evocações que me fazem voltar para o passado, redescobri a menina que um dia eu fui, fazendo buracos no morro de argila branca, amaciando-a com água e modelando-a em pequenos pássaros. Esta menina que não mais habito sorria sem abrir os lábios, para não mostrar a falta do dente que caíra, e limpava as mãos de barro em sua roupa de sítio, chinelo nos dedos. O  sol suave de outono lhe caía em cheio naquele cenário, junto com a brisa fresca que mexia em seus cabelos cacheados e seus olhos sorriam. Plena ela era, plena. Sabia-se a si mesma naquele instante, não duvidava porque desconhecia, e a inocência a protegia da angústia de não ser aquilo que os outros gostariam que ela fosse.
Nas evocações que me chamam para o passado, aquela menina se preparava com um vestido amarelo para dançar. Não sabia dar nome para a alegria que sentia, então vestia--se de delicadezas para o garotinho que a fazia sorrir, e o fazia sorrir também. Os véus da palavra ainda não haviam sido levantados para eles. Não nomeado, o amor era livre para estar onde queria, sem vergonhas, medos e pecados. O amor era e não era em si mesmo, porque assim não fora chamado.

O passado revira no presente, e vejo a menina de mãos dadas com seu pai, se equilibrando na guia da calçada, descendo a ladeira rumo ao mar. A imensidão de areia branca, convidativa, as gaivotas que voavam em profusão, arremetendo no mar logo á frente, buscando seu pescado. E a menina, esta que eu fui, respirava fundo, falando sem parar, confiante, escorada pela figura ao lado. Não posso mais pisar os mesmos passos, então flutuo. Não posso ser mais esta menina, então a contemplo. Não posso mais entrar dentro dela, mas a levo, intacta, aqui dentro, vestida de memórias, e tão somente a toco com os olhos...

- este post é parte integrante do projeto Caderno de Notas - Segunda Edição do qual participam as autoras Ana Claudia Marques, Ingrid Caldas, Luciana Nepomuceno, Lunna Guedes, Maria Cininha, Tatiana Kielberman, Thelma Ramalho e, a convidada Mariana Gouveia.

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Quem chega aqui deve perceber que as postagens estão cada vez mais escassas. O motivo real é a criação, há mais de dois anos, de outro blog,...