O
sol quente invade o quarto, pela veneziana entreaberta da janela azul. A
sensação de calor nos pés a faz abrir os olhos. O feixe de luz a cega, e a faz
ver pontos azuis bailando em frente aos seus olhos. Olha para o lado, e não vê
ninguém. Ouve um barulho vindo da cozinha. O armário sendo aberto, panelas se
batendo... então é lá que ele está...
Levanta-se
e veste-se com a camiseta dele, enorme para ela. Passa a camiseta pela cabeça,
e para um segundo, inebriada com o perfume dele. Cheiro bom... hum... vai até o
banheiro, passa uma água nos cabelos extremamente curtos, para que tomem uma
forma mais agradável. Seus olhos esverdeados brilham, sua face está rosada. Exibe
um sorriso para o espelho, aprovando a própria figura.
Logo
está na cozinha e o vê preparando o café, torrando os pães amanhecidos... achou
um mamão, e o cortou em duas bandas. Serviço de hotel, pensa ela, chegando por
trás dele, o enlaçando e beijando seu ombro. Ele vira para ela, e pede ajuda, não
sabe onde fica nada. Percebe que ela está com sua camiseta, ri do fato e a puxa
para si.
Ela
o olha, ele a olha, e não dizem nada. De repente, uma mudez os toma, um carinho
que preenche todo o peito, e os faz ficarem assim, afogados nos olhos um do
outro. A água na chaleira ferve, sem chamar a atenção dos dois amantes. O tempo
parece correr em câmera lenta, em atenção aos dois. O instante é quebrado, “o
café!”, lembra ele, e ela busca o pó, coador, bule. Continuam a quatro mãos,
buscando não perder a cumplicidade, o
sentimento guardado nas entranhas, o arrepio nas mãos se tocando.
Café
passado, pão aquecido com a margarina derretendo em cima, os dois se voltam
para a mesa posta, e fazem a refeição entre conversas simples, parando de
quando em vez para um afago, um beijo. Apaixonados.
E de
onde esta paixão? Dois solitários, de meia idade, perdidos numa praia em pleno
inverno. Ela andava pela praia, na areia dura que a maré baixa deixara, um
casaco a agasalhar, pensando na má idéia desta viagem solitária para passar
frio no litoral. Ele vinha na direção contrária, pés no chão, não parecendo
importar-se com o frio, não fora o moletom surrado que vestia. Cruzaram-se e
ele a cumprimentou, com um ligeiro sorriso. Ela sorriu, lisonjeada. Sem pensar,
passou as mãos para ajeitar os cabelos. Cruzaram-se de novo na volta, e ele
sorriu novamente para ela.
No
dia seguinte, mesmo com vento, ela foi a praia. Novamente o encontrou. Ou
melhor dizendo, ele a encontrou, pois veio atrás dela, caminhando apressado, e
começou a caminhar a seu lado. Ela o olhou, e ele perguntou se incomodava. Não,
estava sozinha, seria bom caminhar com alguém, disse. Se apresentaram. Dois
solitários, buscando algum tipo de férias dos respectivos empregos. Terminada a
caminhada no frio cortante que vinha do mar, ele a chamou para almoçar num
restaurante caiçara, simples, prato feito, segundo ele, mas comida feita na
hora todo dia. Ela estava quase dando uma desculpa, mas ele insistiu. Estavam
os dois sozinhos, e a não ser que ele fosse muito antipático ou inconveniente,
ela poderia ir almoçar com ele. Ela riu, disse que ele não era nem uma coisa
nem outra. Somente a falta de costume de ter companhia...
Comeram
aquele almoço “honesto”, como ele definiu, trocando informações entre si;
dividiram uma cerveja, brindaram ao fato de terem se encontrado, naquela praia
gelada e vazia. Esfriava mais, e ele perguntou onde ela estava hospedada, ele a
levaria até lá, assim conversariam mais um pouco no caminho. Ela disse que
estava na casa de uma amiga, que sempre emprestava para ela nestes períodos de
baixa temporada. Ele disse que estava numa pousada ali perto, aproveitando um
período de descanso merecido. Não tinham pressa de se ir; ficaram papeando.
Ele
a levou até a casa, como prometido; ventava, e ele a abraçou. Ela gostou e
deixou; o caminho ficou mais longo, pois os dois se encontraram no calor um do
outro. Vividos, deixaram a sensação boa se prolongar. No portão de ferro
enferrujado, ela perguntou se no dia seguinte ele iria andar na praia. Ele
respondeu afirmativamente, e perguntou se não poderia chamá-la no dia seguinte.
Tomariam café no boteco, que tal? Ela aceitou, rindo, afirmando que seria uma
aventura...
Ela
entrou na casa e foi direto para um banho, se aquecer. Enquanto se despia,
olhou-se no espelho: até que não estava mal para uma mulher de cinquenta...a
menopausa a deixara mais cheinha, mas sua pele continuava firme. Sua face
redonda e rosada, seus dentes pequenos, lhe davam uns anos a menos. Olhou-se no
espelho e pensou se ele a acharia bonita. Mas que besteira, repreendeu-se,
sozinha, rindo. Nem o conhecia...mas o cheiro do perfume dele veio na memória,
e ela sorriu sem perceber.
Enquanto
isso ele voltava para seu quarto na pousada, mãos no bolso, cantarolando alguma
canção perdida na memória. Mulher agradável, encantadora, engraçada... a quanto
tempo não se sentia assim, desde que a esposa falecera? Cinco anos? Ou mais?
Acostumara a viver sozinho; a esposa passara por um longo período de doença, e
os dois souberam quando ela estava indo; prometeram que não falariam sobre a
doença, aproveitariam o tempo que lhes restava; ele dormia com medo de acordar
e ela não. Um dia ela disse que queria ir ao hospital, e ele já sabia o
desfecho; ela também. Ficou com ela nos dias em que se seguiram, dopada pela
morfina para a dor. Ele a acompanhou até o último momento. Quando ela se fora,
passou por todos os períodos, de luto, de revolta, de resignação, e após tudo
isto, decidiu que poderia viver. O trabalho o ocupava; não tiveram filhos, e
podia viajar quando quisesse. Mas normalmente não queria. E agora, nestas
férias praticamente obrigatórias, para não ferir a legislação e não complicar a
empresa, encontra esta mulher...
No
dia seguinte ele foi buscá-la como combinado; ela o esperava ansiosa, e só veio
a perceber quando a campainha tocou. O dia estava frio e ensolarado; ventava
pouco, e ele explicou que a lua mudara, ela não sabia? Não, ela não sabia.
Tomaram café no boteco, desceram para a praia, caminhando lado a lado. Uma onda
veio com vontade na direção dos dois, e ele a puxou pela mão, para a areia
fofa, longe das ondas. A maré estava mais alta, era a lua... ele não lhe soltou
a mão, e continuaram a caminhar assim, numa renovada adolescência, os hormônios
a toda, o coração de ambos
acelerado...mas sem os pudores da adolescência, sorriram um para o outro, ele a
puxou para si, e caminharam abraçados, cônscios do que ocorria com os dois.
Passaram
o dia juntos, ele lhe falou da esposa falecida; ela lhe falou do trabalho como
artista, que lhe pedira liberdade a vida toda. Almoçaram no mesmo lugar do dia
anterior; a proprietária do restaurantezinho olhou para os dois, deu um sorriso
cúmplice para eles, e os deixou conversarem, percebendo com aquela sabedoria de
quem já viveu muito, o momento deles.
Quando
ele foi levá-la até a casa, ela perguntou se ele não queria jantar com ela, na
casa. Ele disse que sim, se pudesse cozinhar, pois tinha prática... entraram
juntos, e ela foi resgatar na geladeira o que poderia virar uma janta; já
estava se arrependendo, será que o que tinha comprado para si daria para os
dois jantarem? Ele chegou por trás dela, e olhou por cima de seu ombro para o
interior da geladeira. Ela riu, e ele perguntou o que havia ali de comestível.
Ela fez o inventário do que havia, e ele foi pedindo o que precisava.
Com
alguma criatividade chegaram a um macarrão com molho branco, com queijo e peito
de peru, que antes estavam destinados ao
café da manhã, e uma salada. Ela sempre trazia um vinho branco e deixava para
gelar, então tinham vinho. Ela não entendia de vinhos, só sabia que gostava do
branco,e disse isso a ele. Ele riu, também não era a especialidade dele...
Jantaram,
o rádio ligado baixinho. O vinho os fez mais soltos, a conversa corria gostosa,
e já sentados no sofá, com seus copos descansando na mesinha a frente, pararam
de repente de conversar, e ficaram se olhando. Ela sorriu e ele a beijou,
mexendo em seus cabelos amorosamente, e dizendo em seguida que a vida era curta
demais, boa demais para se desperdiçar um momento especial como aquele. Ela
assentiu com a cabeça, e, se alguém os olhasse naquele momento, diria que
haviam rejuvenescido...
Passaram
a noite juntos, dois novos amantes se descobrindo e se completando no milagre
da entrega, como ocorre desde que o mundo é mundo... dormiram abraçados,
cansados, felizes. Ele acordou antes, foi para a cozinha tentar lhe fazer uma
surpresa. Ela acordara com o sol lhe esquentando os pés...
E lá
estavam eles, dois seres de meia idade, sentindo-se como jovens, apaixonados.
Acordo tácito entre os dois, a vida era curta, e devia ser apreciada em
momentos especiais, como aquele...o amor subiu a serra, provavelmente por não
ser um amor de verão, mas de inverno, que é a estação da madureza, das certezas,
das estradas caminhadas, das lições aprendidas. Se foram felizes para sempre,
esta história não nos conta, mas com certeza seguiram os preceitos do poetinha
Vinícius de Moraes: “que seja eterno enquanto dure”.
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