sábado, 4 de fevereiro de 2012

SOLILÓQUIO

            Queria escrever uma carta para ela. Podia escrever uma, não podia? Passa a mão nos cabelos, as volta para o bolso, e anda pela sala do minúsculo apartamento. Sozinho, indeciso, ficando velho.

            Vai até a velha mesa, cheia de livros e papéis espalhados, anotações, contas pagas. Tira o gato velho de cima da mesa, abre seu laptop e começa a escrever: “cara Ludmila,” e risca. Cara, não, é muito formal. “Querida Ludmila”. Não querida não pode, vai se denunciar. “Olá, Ludmila!” Perfeito, informal, amigo.

            E aí estaca novamente. O que vai escrever para ela? Sobre a chuva que caiu na semana? Ou sobre sua rotina de solteirice mofada? Qual será a desculpa desta vez? Já escaneou as fotos de colégio e lhe mandou os arquivos, lhe mandou mensagens edificantes e textos sobre os mais diversos assuntos. Mas nunca mais do que duas linhas, comentando sobre o assunto. Nada sobre o que sentia, sobre o que queria realmente falar.

            Sempre pisando em ovos, sempre muito polido, como mandava a etiqueta e a educação. Imagine se ela pensasse que ele a estava flertando via correio eletrônico?

            Levanta-se novamente, inquieto. O gato lhe segue. A cabeça cheia de idéias, o espírito cheio de vontades, mas não consegue escrever nada. Vai preparar um café, um expresso, na nova cafeteira. Depois que ela comentara que o melhor café era o expresso, comprara num impulso uma pequena cafeteira para seu apartamento. Guardou no armário a antiga, e a cada expresso apreciado, lembrava-se de Ludmila.

            Quando ele a vira, no encontro de ex-alunos do colégio, já três décadas haviam se passado. Os cabelos, antes de um castanho claro, agora estavam com alguns raios de branco. O corpo transformara-se no de uma mulher, ainda bem torneado, mas com mais carnes. Quando ela o abraçara, realmente feliz por vê-lo, o ar lhe faltou. Sentia-se novamente como aquele rapazote que um dia fora, magrelo, alto como um varapau, meio encolhido, tentando não aparecer tanto. Sorrira, e por um instante sentira que até seus cabelos tinham voltado a cabeça... ela continuava com o mesmo espírito alegre, não parava de falar, contar da vida, dos filhos já crescidos...

            Ele a observava, e não percebeu quando ela lhe perguntara dele, o que tinha sido dele? Ele então contara que não casara, que acabara vivendo para o trabalho, vivendo em várias cidades, aonde o emprego exigia. Ela lhe perguntou por que, se ele era tão popular no colégio, não fazia sentido. Ele respondeu que talvez não tivesse achado a pessoa certa.

            O encontro foi um sucesso. Endereços eletrônicos trocados, falsas declarações de eterna amizade, que os contatos seriam mais frequentes, piadas sem graça, lembranças da juventude. Na despedida, Ludmila lhe pediu que escrevesse mesmo. Eram tão amigos, não eram? Porque não voltarem a se comunicar?

            E então o recomeço da comunicação. Cada vez que ele ia lhe escrever um e-mail, rodava pela a pequena sala, suava, falava sozinho. Escrevia e apagava frases que lhe soavam pessoais demais. Afinal, o que ela poderia querer com ele? Mas a ele bastava falar com ela.

            Deu de sonhar com Ludmila. Ela se insinuava para ele nos sonhos. Seu corpo de mulher o chamava, um sorriso jovem, contrastando com as coxas de mulher já feita, os seios fartos de quem já fora mãe. Ele acordava suado, transtornado. Tentou sair com alguém, ler livros, ir viajar, mas ela se tornara uma obsessão.

            Tudo o que ela lhe enviava era uma mensagem criptografada, só para ele. Ah, ela também devia estar como ele. Mas e se não estivesse? Deu de esquecer a hora de comer. E de aumentar a ingestão de café, só para se sentir mais perto dela, quando tomava o expresso.

            E hoje, tinha que escrever a carta para ela. Cansou de rodeios consigo mesmo. E como que em um transe benfazejo, despejou:

“Cara Ludmila.

 Cara, não, caríssima. Como está você? Antes, quero lhe dizer como estou. Tenho pensado muito em você ultimamente, aliás diariamente. Sonho com você, e para ser mais exato, em trajes menores. Estou ficando louco, não sei o que me deu, mas preciso te escrever sobre esta minha obsessão por você.

Já que me perguntou porque eu não me casei, lhe confesso: porque você já ia se casar com outro, e eu era muito covarde na época para poder me declarar. Pensei que encontraria outra, mas não encontrei. Agora, o que eu tenho para perder? Os anos se passaram, meus cabelos caíram, e, como diria o poeta, minha companheira fiel é a solidão.

Sei que você tem sua família, sua vida, e não espero que mude nada por minha causa. Só preciso que você saiba como foi e é especial para mim, desde nossa mocidade. Confesso, também, que se você quiser mudar, de preferência para minha casa, eu aceito de bom grado. Não sou orgulhoso.

Também sei cozinhar, e ainda que tenha vivido só, sei ser um bom amante, ainda mais se você for o meu par na contradança. Te quero demais e preciso te dizer isto, mesmo que você nunca mais queira falar comigo.”

            Acabou de escrever, colocou seu nome, e leu de novo. Caiu em si. Como iria enviar uma carta daquelas? Levantou-se e foi fazer outro café. Foi para a cozinha meneando a cabeça, se chamando de mentecapto, e dando risada de sua própria tolice.

            Voltou para a sala, café na mão,  e estacou, lívido. Seu gato acabava de sair de cima de seu laptop, e ele viu, rapidamente a tela da mensagem desaparecer. Correu para a mesa, mas não chegou a tempo. A mensagem fora enviada!

            Começou a passar mal. Se sentou no sofá, uma dor aguda no peito. O gato desgraçado subiu em seu colo, e ele não conseguia se mexer de dor. Ao fundo, o telefone começou a tocar. Ele ainda conseguiu pegar o aparelho, a tempo de escutar a voz de Ludmila do outro lado da linha. Não aguentou: morreu.

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