domingo, 1 de abril de 2012

EU SOU

                Sentada em minha escrivaninha, com meu passarinho ao ombro, faço o trabalho de pensar. Sim, penso, de forma com que eu exista. Eu insisto em existir fora do lugar comum, em existir além da linha de tempo e espaço, fora das idéias pré-concebidas.

                Eu insisto em ser uma sonhadora, que para subverter a ordem, deixa de sonhar e põe as mãos na massa, arregaça as mangas, para que seu sonho se concretize. A antítese do sonho, transformando-o em pura realidade.

                Sonhador que só sonha continua na mediocridade do sujeito vexado por existir, vexado por ter sido notado, por querer sumir. Eu aprendi a não ser mais assim. Quero, para mim, a clareza de duas luas cheias. Que me iluminem toda,  fui feita para brilhar! Mas o que será isto,  pensarão aqueles acostumados a penumbra agradável do lugar comum? Como ousa esta sair de seus papéis ancestralmente definidos, de mulher, mãe, filha, e querer ser ela mesma? Absurdo!

                Não, não é absurdo. Hoje eu sou aquela que sempre fui, mas sem as vestes que me cobriam, destoando com meus contornos. Hoje eu sei quem sou, desde tempos imemoriais, mesmo antes do meu nascimento, antes de minhas mil mortes. Fui cortesã, fui abadessa, fui pobre, fui condessa, fui amada e fui amante, idosa e infante, macho e fêmea, pó e pedra, mar e rio. Eu fui e sou, inteira, esta grandeza que se define como Alma, com tantas primaveras e outonos que já nem sei.

                O pássaro se agita em seu sono. Ele percebe todos os meus personagens desfilarem pela sala, lentamente, se assusta, e voa para a segurança da gaiola, aonde há sua água, seu alimento e sua fêmea e filhotes a espera. Um lar. Eu o admiro. Me sinto um São Francisco, abençoada com este pequeno animal em meu ombro. Me traz sempre a lembrança de que sou muito amada.

                Escrevo isto, me corrigindo já. Me amo antes que qualquer um tenha me amado. Sou íntima de mim mesma antes que qualquer um tenha me tocado. Sou íntegra desde que me dei conta da simplicidade da vida, quando não queremos complicá-la. A vida é boa de ser vivida, se soubermos dar-lhe pouca importância. Caso contrário, ela começa a aparecer mais do que o dono da vida, e o domina completamente. Ilusões, maya. Buscar fora o que sempre esteve dentro, te esperando.  Encantar-se com o altar interno, de rara beleza, delicados detalhes, e um espelho mostrando aquilo que estavas procurando, há tanto tempo.

                A paixão? É transitória, passa, e ainda que não passe, não deve ser o foco. Se não nutrir a paixão por mim mesma, a qualquer desencontro estarei derrubada, acabada, apartada de um meu pedaço, que deixarei na mão de um estranho. Mas se nutrir a paixão por mim mesma, por minhas graças, habilidades, qualidades, de mim não me apartarei jamais. E ainda que as paixões acabem, mudem ou permaneçam, fiéis, eu estarei completa em mim mesma, mas desfrutando de bons momentos compartilhados com quem me ame e respeite. Mesmo que seja meu pássaro.

                Sou agora um pedaço do Nada, Caos primordial, me importando somente em sentir e transmitir o que sinto, me fazendo entender. Sou uma e sou muitas. Sou tudo e sou nada, o pó e a pedra, a erva daninha e a arvore benfazeja, de bons frutos e sombras. Eu sou. Sou a potência infinita de criação, querendo abraçar o mundo, querendo me dar em pedaços.

                Penso, logo, existo? Ou insisto em existir, assim, trêmula de emoção  ou impávida ante a vida e a morte? Volto a minha escrivaninha. A areia do sono me cerra os olhos, meus pensamentos voluteiam como que bailando, e só tenho uma certeza hoje: eu sou.

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