sexta-feira, 6 de abril de 2012

QUARTO, CASACO E CECÍLIA


                Hoje me deu saudades dos meus tempos de adolescente. Eu dividia o quarto com minha irmã mais nova, e era quase um milagre que coubéssemos nós duas ali. Quando a cama box dela era puxada, para dormir, não punhamos mais os pés no chão; só dava para passar por cima das camas...

            Tínhamos uma estante que tornava-se escrivaninha, e era ali que estudávamos. Era ali, também, que eu escrevia, muitas vezes. A minha janela, de venezianas brancas, dava para uma pequena vila, atrás de nosso sobrado, e para um pé de ipê amarelo que transformava o meu mundo cada vez que floria. Podia ficar horas ali, olhando pela janela, sentada na minha cadeira branquinha, vendo o céu recortado pelos galhos do ipê.

            Quando o outono chegava, vinha com ele uma sensação indescritível, de borboletas no estômago, que ia preenchendo tudo, até chegar ao peito, como se eu fosse flutuar. Via as folhas das árvores caindo, e tudo parecia irreal. Ainda consigo sentir o mesmo, quando recordo daquele quarto.

            Tinha um casaquinho azul, que ficava melhor no espaldar da cadeira do que em mim; o desenhei várias vezes, achava que a cadeira ficava muito elegante. Diferentemente de mim, que me achava desajeitada, naquele crescer todo, cheia de pernas e mãos estabanadas, a voz sempre muito alta, uma timidez de doer os ossos. Eu era sem ainda ser; a consciência de mim apenas brotara, sem grandes pretensões, através de poemas e diários (diariamente visitados por minha irmã, para minha agonia!).

            E então veio o natal de 84. Pedi livros, e entre eles, Flor de Poemas, de Cecília Meireles. Daí por diante, quantas vezes me peguei a ler aquele livro, e viajar em seus poemas, me identificar com ela. Sentir-me, tão adolescente, com fases, como a lua, em seu poema Lua Adversa; ou descobrir-me, quando lia

“Eu canto porque o instante existe

E minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

Sou poeta.”

            Meu coração adolescente já pulsava, reconhecendo a verdadeira natureza. Eu demorei a entender que a palavra não era coadjuvante em minha vida, mas a atriz principal. Mas me danava a escrever, me identificando com a poetisa; “não sei se sou eu, não sei se sou ela...”. 

            Quando todos dormiam na casa, eu levantava da cama, e ia sentar dentro do banheiro da suíte, com meu casaquinho azul, para não esfriar as costas nos azulejos da parede. Eu sentava no tapete do banheiro, e escrevia poemas e mais poemas. Depois, relia os antigos, para tomar consciência de quem eu estava me tornando.

            E lia meus poemas como se fossem histórias de outro mundo, que estivessem me visitando. Depois ia dormir, feliz, com versos na cabeça. Na manhã seguinte, acordava em meu pequeno quarto, afogada em sonhos que se transformariam em novos poemas. Mas só mais tarde, na volta da escola, quando me sentava novamente na escrivaninha ao lado da branca janela, e me perdia nos galhos do ipê...

            O quarto ainda existe, mas as meninas que lá dormiam já se mudaram há muito. A minha garota, porém, algumas noites espera que todos durmam, e volta, sorrateira, para seu antigo quarto. Ela acende o pequeno abajur, entra debaixo das cobertas, e fica apreciando o casaquinho azul, deixando a branca cadeira toda elegante, e com um sorriso no rosto, adormece.

3 comentários:

  1. Muito bom! Muito gostoso tornar as lembranças em relembranças e ainda mais inaudível quando elas se tornam as nossas letras

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  2. O meu livro da Cecília eu dei pra sua filha quando ela era pequena, lembra?
    Essa menina
    Tão pequenina
    Quer ser bailarina
    Não sabe nem dó e nem ré
    Mas fica na ponta do pé..."
    Você lembra quando a gente ainda dormia no bem-bolado em que vc tinha seu compartimento secreto no qual eu adorava fuçar?
    Sei lá, acho que a vida teria sido mais gentil contigo se eu tivesse nascido menino e dividisse o quarto com o Fabio, porque pelo jeito eu te fiz sofrer.
    Desculpa se eu passei a minha infância tentando seguir o exemplo da minha irmã mais velha serena e comportada, mas o bicho carpinteiro que vivia dentro do meu corpo me fez uma criança sem parada.
    Beijos
    Angel

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    Respostas
    1. Querida mana,
      não precisa se desculpar, pois sua natureza sempre foi a do riso, do movimento. Eu aprendi contigo, e acho que você aprendeu comigo. Hoje você é uma leitora exigente, e muitos livros que tenho na estante vieram de você. Em contrapartida, eu aprendi a rir, abraçar, ir aonde estão meus amigos, como você sempre soube fazer. Gangorras da vida.
      E, se você não lesse meus diários, eu não teria aprendido a escrever tão bem através do código da poesia. Tudo tem uma razão de ser. Te amo muito!
      Ana

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