segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

LÚCIDA

Li no Blog do Menalton Braff uma short history. Então escrevi esta, há muito guardada na minha cabeça, pedindo para sair.


Meses e meses naquela casa de repouso. Afinal, quebrar um fêmur aos 78 anos e sozinha, só a poderia levar para um lugar como aquele. Como ansiava a volta para casa! Mais dois dias, prometera o médico, e ela voltaria para seu velho sobrado. Ah, teria que fazer adaptações, sim. Não poderia ir ao andar de cima tão cedo, não, não.


“A cabeça tão boa, e este corpo que me pesa. Estes joelhos com artrose, poderiam me ajudar, não é, Senhor? O Senhor está me ouvindo? Eu só quero a minha casa em paz. Não quero mais briga com os filhos, que aqui me deixaram, quero só minha roda de amigos, que me acompanham.”

Chega sua amiga, Leilinha, recém convertida para o budismo. “Oi, gatona. Vim te ajudar com o banho. Como você está?” Ela responde que está bem, um pouco ansiosa com sua volta para casa. Queria encontrar a casa vazia, não com os filhos, rapinando em volta.

Leilinha diz para ela confiar nos guias, tudo se ajeita. A enfermeira chega, sorridente, avisando que é hora do banho, cumprimenta Leilinha, figura assídua junto a amiga enferma. Começam a ajudar a velha senhora a despir-se. Seu grande corpo vai sendo manipulado pelas mãos ágeis e carinhosas da amiga e da enfermeira, que a transferem para a cadeira de banho com todo o cuidado.

Ela a tudo percebe e registra. Lúcida, lúcida, sempre. Ajuda as duas como pode, aproveitando a água que lhe lava o corpo e a alma. Lúcida, lúcida, luz... a voz de Leilinha está longe, a enfermeira a olha nos olhos, a chama. “estou aqui, menina! Calma! Que tanto desespero?”

Lúcida, lúcida, luz... ela percebe o plano mudando, o teto está mais longe, ou ela que caiu? Leilinha fala com ela como se ela fosse um bebê, que coisa! “eu quebrei o fêmur, não estou gagá!” Percebe sua cabeça no colo de Leilinha, mas será possível que a maluca está me recitando os sutras em chinês? Tenta falar, mas seu corpo não responde.

Lúcida, lúcida, Leilinha lhe fecha os olhos, e luz!! Salta fora do corpo, velha casca de grande serventia, e pôe-se de pé num salto. A um canto a enfermeira chora, chamando alguém pelo interfone; Leilinha retém sua cabeça nas mãos e afaga seus cabelos, recitando seus sutras encomendando sua alma. Ela olha para si mesma, para as mãos, para suas pernas. Seu velho corpo ficou para trás. “Nossa, Senhor, como Vosmecê é rápido prá me dar resposta.”

E sai caminhando, feliz da vida, para o seu novo sobrado, onde há de ter paz.

Um comentário:

  1. as passagens são só passagens; não são términos. são portas, são ilusões. isso era o que minha amiga ensinava. saudades.

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